24 outubro, 2012

teu lugar é no estômago

imagem daqui.
Teu lugar é no estômago, não no coração.
Te engoli em seco pela fome e, com desespero,
devorei cada palavra tua como a última garfada
de uma rara refeição.

Saboreei teu gosto com cuidado
e senti no corpo cada tempero usado
na tua fabricação.

Li tua receita de cabo a rabo,
que me aquecia em lume brando.
Decorei todos os ingredientes
e de cada um anotei cada porção.

Sorvi cada um dos teus poucos gestos,
fervidos na lentidão de um banho maria.
Deixei teu aroma penetrar nos meus poros,
invadir meu olfato e deixar o gosto na língua.

Mas você me deu indigestão.

Várias colheres de palavras não curam
esse embrulho no estômago, esse soco sem mão.
Vários beijos não remendam essa azia
insistente e ardida no estômago.
E no coração.

16 outubro, 2012

na janela

imagem: daqui.

- Senta direito, Gabriela. - disse Matilde com uma voz firme. 
- Quantas vezes eu preciso dizer pra você não 
colocar o rosto pra fora da janela? - continua a mãe.

Perdida no vento que fazia lá fora,
com os olhos fechados e sem demora,
Gabriela responde com a doçura negligente
da infância:

- Eu só queria sentir o vento no rosto, mamãe. 
Sentir o sol queimar minha testa. 
A estrada é tão longa, o percurso é uma demora, 
o destino é uma espera e eu nem sei pra onde 
eu indo, mesmo. Me deixa ficar com a cabeça 
pra fora da janela. - responde Gabriela.

Diante da sensatez por trás daquela ingenuidade
comovente, Matilde segurou o volante com suas 
duas mãos trêmulas e chorou. Escondeu a lágrima 
que escorreu na face, com um sorriso no retrovisor.

Como ela nunca compreendera? Porquê ela 
sempre escolhera fechar as portas e as janelas? 
E como Gabriela, tão pequena, percebera 
que viver é mesmo estar exposta, com os olhos, 
o rosto e o coração pra fora?

- Gabriela...mamãe vai parar o carro 
pra você abrir a porta.



15 outubro, 2012

sem intruso



é uma cadeira vazia no canto da sala.
a folha que não foi varrida da rua.
é ver de perto a vida desbotada.
é estar vestida se sentindo nua.

é a música cansada de um só acorde.
o violão esquecido com as cordas partidas.
é uma voz fraca, fina e sentida.
é uma partitura muda e despida.

é o espelho refletindo sem ter quem olhe.
brincar de esconde sem ter quem ache.
é uma pele macia sem ter quem afague.
uma chuva insistente que não molhe.

é a valsa tocada fora do compasso.
a poesia cantada sem ter quem escute.
é um oco no peito, um excesso de espaço.
é no corpo latente a falta de abraço.

é um vestido novo em desuso.
é o fim de um show sem aplauso.
a película de um filme confuso.

assim é um coração sem intruso.



estamos juntos

imagem: daqui.

Vamos fingir que estamos juntos. E que juntos fazemos planos. E que os planos fazem sentido. E que o sentido certo é o que caminho que tomamos. E que, de mãos dadas, tomamos mais um refresco. E que o refresco é a água fria que desce no corpo. E que um corpo sem o outro é metade. E que metade do amor é esforço. E que não é esforço ficar do meu lado. E que o lado direito é onde você dorme. E que dormir é mais do que dividir o metro quadrado. E que nesse quadrado somos inteiros. E inteiros sonhamos quando estamos deitados. E sonhando fingimos que nos amamos. E amando fazemos falsos planos.


05 outubro, 2012

a culpa é sua

 
A culpa da minha ansiedade é toda sua. Tic tac tic tac tic tac, batendo no meu peito a conta-gotas. Quero inverter a cronologia das coisas e chegar logo ao final. Quero ver se encontrei aquele amor pra vida toda, se ele me amou cada dia mais. Quero saber como foi o dia do nosso casamento e se a gente continuou se olhando com o mesmo olhar. Quero saber que rosto tiveram os nossos filhos e quantos foram os filhos a quem eu tive que ensinar a andar. Mas você me faz esperar tanto, com uma paciência que eu perdi em algum lugar. 

Quero saber se larguei aquele emprego infeliz pra fazer a tal viagem mirabolante, para aquele lugar desconhecido. Quero saber se tive coragem para isso, por que eu me sinto sempre tão covarde. Mas você não me dá essa chance, me deixa na angústia de não saber o próximo capítulo desse livro. E é por isso que eu te culpo.

Quero saber quem dividiu a varanda comigo, segurando em silêncio a minha mão. Quero saber quem de nós dois, depois ficou sozinho, e se eu finalmente encontrei um cãozinho que morasse comigo. Quero saber se fui feliz para sempre, se valeu a pena o esforço e a dor, quero saber se aprendi a domar o coração.

Quero saber se encontrei, pelo menos metade, das respostas que procurei, ou se continuei uma questionadora incansável, quero saber se um dia minha cabeça me deu paz de tanta indagação. Sabe o que eu quero saber também? Quando que você vai acelerar o passo, adiantar esses ponteiros e me deixar saber se tudo deu certo, ou não.

Quero saber se peguei o melhor caminho e se troquei aquele carro velho, que era o meu xodó. Quero saber quantas pessoas permaneceram comigo e quantas não. Quero saber quantas coisas deixei inacabadas, quantos medos adquiri ou superei. E o medo de avião? Será que eu deixei? Acho que você poderia me adiantar uns dias para eu saber que gosto tem o amanhã.

Quero saber se virei um barro duro que não molda e ninguém acerta a mão, ou se continuei mudando e me surpreendendo com as novas imagens que vejo no espelho, quero saber quantas novas rugas brotaram dos meus olhos e quantas lágrimas também. Quero saber se consegui, finalmente, dormir direito, se coloquei a felicidade no lugar da frustração e se um dia eu tive coragem de tirar os sonhos do travesseiro. Quero saber.

Mas você continua o seu caminho e, porra, como você anda devagar. Não que eu tenha pressa na velhice, mas eu só queria ir lá no fim e voltar. Só pra acabar com a ansiedade e saber se tudo correu bem.

01 outubro, 2012

aula de interpretação

- Alô? Fulano? você taí?

Então, deixa eu te dizer que me deslumbrei tá? Me apaixonei por você assim que nos conhecemos. Mentira. Não foi paixão, foi um encantamento superficial disfarçado de tesão. O fato é que, se fosse paixão, era cedo demais pra chegar a esse diagnóstico que eu preferi esquecer. Mas esse sentimento sem nome (inflamado pelo álcool), ficou guardado lá no fundo da gaveta, como a lembrança de uma noite incrível com um desconhecido. Mas parecia tão real, né? Parecia até bom.

Aí você continuou alimentando esse qualquer-coisa-estranha que tava rolando e eu me deixei ir. Juro que tentei uma frenagem brusca, mas você amorteceu o impacto e, sei lá como, tomou o controle da direção. Desculpa, eu devo ter sido muito ingênua mesmo em achar que poderia interpretar seus sinais do jeito que você estava mandando e não do jeito que eu estava recebendo. Talvez faltou sinceridade, daquelas bem dolorosas, de ambas as partes. E tem uma diferença absurda nos nossos discursos por que nós somos absurdamente diferentes. Você entende, né? 

Então. É isso. Foi uma falha na comunicação e eu peço desculpas pelo sentimento precipitado e por não manter o distanciamento necessário na nossa relação. A gente devia ter redigido algum tipo de cláusula que protegesse nossos interesses, né? Espero que você ainda esteja me ouvindo por que esse sinal é péssimo e a rede cai de vez em quando. Dizem que as operadoras fazem isso de propósito pra ganhar dinheiro com a ligação. Mas voltando...

Realmente não faz o menor sentido a gente se apaixonar por quem nos faz rir todos os dias. As coisas não são assim, né? Ou são? As mulheres são mesmo bobas, e acham que risadas alimentam uma paixão, né? Fui muito leviana no meu julgamento e pulei a aula de interpretação. Por isso estou aqui, pra pedir desculpas pelo equívoco e apagar esses rabiscos que fizemos juntos. Eu sempre soube desenhar melhor que você e talvez tenha sido esse o problema. Enquanto você criava um boneco de palitos, eu pintava uma paisagem inteira, com todas as sombras, nuances e proporções.

Além disso eu enxerguei em você os mesmos defeitos que vi nos outros por quem me apaixonei, e isso me cativou. Sim, eu tenho essa teoria estranha de que a gente não se apaixona por pessoas novas, mas por velhos padrões. E aí você tá bem dentro da minha curva sinuosa de erros sucessivos. Mais um erro que eu estava disposta a insistir e deve ser por que eu me divirto com isso. Mas que bom que a gente dorme e acorda e vê tudo numa perspectiva nova e consegue perceber a loucura que transbordou na razão.

E olha, eu tô aqui falando há 5 minutos sem interrupção e nem sei o que você tem pra me dizer, mas estou disposta a ouvir a sua versão.

- Moça, você ligou por engano.