27 novembro, 2012

com urgência

A maioria das mulheres é que desempenha esse papel. O esforço de criar um relacionamento e fazer com que ele dê certo e permaneça existindo. A porcentagem de homens que batalham todos os dias para manter "a casa" é infinitamente menor do que a de mulheres dispostas a fazer dessa, sua missão de vida. 

Investimos tempo, dedicação, horas de salão e calcinhas novas. Fingimos que não vemos uma porção de coisas, fazemos de conta que não sentimos falta daquelas baboseiras românticas, e que somos todas muito adultas, centradas e independentes. Colocamos de lado nossa carência para não incomodar o parceiro e raramente falamos abertamente dos planos que, secretamente, fazemos com eles. De casar, ter filhos e passar o resto da vida juntos. Jogamos para baixo do tapete todas as falhas do outro e junto vão também as ausências, a falta de palavras do pé do ouvido. Colocamos na balança o dobro do peso para as poucas alegrias, a metade da medida para as lágrimas que choramos.

Aplicamos uma visão "holística" do relacionamento que poderia facilmente ser confundida com um glaucoma. E com muita esperança sempre construimos coisas que, de fato, não existem. Somos criadas com a urgência de ser feliz para sempre. E isso é muito natural (e urgente) se levarmos em consideração que a natureza nos dotou de pouco tempo de procriação. É um "movimento" psicológico natural para a maioria das mulheres. Com essa urgência uterina construimos sonhos, amores profundos, expectativas. Com essa urgência queremos o maior amor do mundo, planejamos a casa e a família. Com essa urgência doamos tudo o que temos pensando que o outro anda no mesmo passo.

Com essa urgência o tempo passa e não sobra nada entre nós.

A parte mais difícil de desapegar não é do outro. É do que nós, mulheres, construimos sozinhas durante um relacionamento. Poucos homens compreendem quando uma mulher diz que "perdeu tempo" com um cara. É que nosso tempo tem outro valor, outro peso. É um investimento que nós fazemos. É o mesmo que colocar dinheiro na poupança e, em vez de render juros, você perder uma boa parte para o imposto de renda. A matemática é essa. Da perda. Se ao menos saíssemos de um relacionamento empatados...mas em geral perdemos o outro e tudo o que projetamos nele. E não é fácil passar anos e anos alimentando um sonho e depois ter que acordar.

E a coisa pode ficar muito pior se pensarmos que em breve outra pessoa terá a chance de fazer aquele mesmo investimento, no seu lugar. E que talvez essa pessoa consiga, de fato, um retorno e você fique apenas assistindo, de camarote, seu castelinho de cartas cair.

Ninguém tem como controlar o que o outro sente ou deixa de sentir, muito menos conseguimos dizer para nós mesmas "pare!". Também não controlamos a hora em que devemos abandonar o barco. Até que outro "investimento" sirva-nos de fôlego para recomeçar, a gente sempre se sente esvaziada, como se o coração fosse um par de bolsos furados, esperando alguém remendar.

22 novembro, 2012

sou de momentos



Sou de momentos.
Num eu amo
no outro odeio
geralmente amo
sem freio.
 
Num eu pinto 
no outro eu leio
num eu construo
no outro rasgo
sem receio.
 
Num eu excedo
no outro eu contenho
e contida em mim
me divido ao meio.

Num eu calo
meu coração cheio
no outro eu grito
meu anseio.

em todos eu escrevo
o que vem no peito.


porto seguro

A idade da Esperança: obra do equatoriano Oswaldo Guayasamín

Porto seguro: Um local que os navios atracam em segurança. Amparo. Confiança. Alguém que está sempre ali, transmitindo força para lutar.


Existem poucas pessoas assim. Mas existem. Pessoas cujo nome acompanha essa denominação de "porto seguro". Pessoas que são como rochas inabaláveis que aguentam, intactas, o bater furioso das nossas ondas. Eu vou e volto. Fortaleço e esmoreço. Renovo e canso. Sorrio e choro, mas meu barco tem sempre um porto para voltar. Posso contar nos dedos as pessoas que são assim, que perto ou longe me dão esse abraço de esperança. Que aliviam o peito e acalmam o coração com meia dúzia de palavras. Que me inundam de um conforto que eu não posso explicar. Que carregam meu coração nas mãos e colocam pra ninar. Que me fazem dormir sorrindo e transformam meu medo em confiança para lutar.

Essas pessoas são raras, mas são certas. É quase dificil identificar, mas quando menos esperamos, estamos acomodados, dentro dos seus braços, protegidos e salvos. Amam minhas loucuras e meus defeitos, compreendem meus desesperos e, se for preciso, gritam junto comigo. Minha maré sobe e desce. Meu convés alaga e esvazia. Minha vela debate, enfurecida, ou navega suave, na brisa. Meu leme apruma ou desgoverna. A proa sacode, alerta, mas meu navio sem destino, tem um lugar pra voltar.


14 novembro, 2012

Caneta na mão

eu com 6 anos, em Portugal.

Deixa eu te dizer o que eu vou fazer. Vou aprontar. Isso mesmo. Com essa cara que você está vendo, sem vergonha, vou fazer o que eu quero aqui mesmo, na sua frente. Sem pudor nem receios. Não vou sequer te olhar nos olhos. Ignoro sua presença e, com deboche, planejo a minha travessura. Vou inventar um mundo novo e não me importo de sujar minhas mãos, ou pingar tinta na roupa.

Senta, assiste, observa a minha criação. Esse momento é só meu e tem algo muito fascinante acontecendo aqui. Eu sei que você está esperando o final, mas enquanto eu não acabo, congela esse momento insano para sempre. Transforma em matéria esse minuto que não vai se repetir. Aproveita que eu estou criando um mundo novo e guarda, para sempre, essa expressão. 

Eu nem sei desenhar direito, nem sei fazer gente com a devida proporção. Nem tenho várias tintas coloridas e, se minha memória não falha, tenho apenas a cor preta, para você ver a minha limitação. Mas olha o que eu tenho na mão. É uma caneta. E com ela eu posso criar o mundo, no vazio de um papel branco.

Posso inventar que as flores são de cores que elas não são, ou que as meninas são sempre felizes, mesmo tendo palitinhos no lugar das mãos. Posso fazer de conta que minha casa tem uma chaminé e que as árvores são todas iguais, que as borboletas são enormes e que meu jardim não tem portão. Posso desenhar nuvens feito de bolas de algodão. Posso colocar o sol no cantinho da folha, e fingir que todas as folhas secas fazem um tapete no chão. Posso criar um mundo diferente, entende?

Agora, olha para mim de novo e lê o que diz a minha expressão:
"felicidade é ter uma caneta na mão."

06 novembro, 2012

Primeiro dia

  
 Não lembro exatamente como foi, mas sei que mamãe costumava passar as noites acordada por que minha irmã caçula, Aimara, chorava muito. Muito é um eufemismo. Minha irmã chorava a noite inteira com o vigor pulmonar de uma soprano. Mamãe não dormia. Levantava-se com olheiras profundas e raramente tinha os cabelos no seu devido lugar. O esgotamento físico era evidente em cada retrato de família e, por isso, naquele dia, como em tantos outros, mamãe não conseguiu acordar.
    Entre uma sinfonia de choro e outro rompante, Aimara cansou de gritar e deixou que mamãe dormisse por algumas horas. No outro dia ela teria que acordar cedo para me levar à escola. Meu primeiro dia de aulas na primeira série da nova escola. Mas mamãe não acordou.
    Eu tinha 5 anos quando decidi não esperar mais. Já tão nova demonstrava os primeiros traços de uma personalidade completamente ansiosa e imediatista. Levantei da cama e coloquei meu melhor vestido. Branco com uns detalhes amarelos muito singelos. Era setembro de 1991 e em um mês eu faria 6. Uma mocinha.
    O frio do outono em Fontanelas, aldeiazinha no entorno da vila de Sintra, em Portugal, já dava seus sinais e mesmo assim eu achei por bem vestir aquele vestido de verão.
    Sem pensar duas vezes saí de casa em silêncio, para não acordar mamãe e fui para a escola, que era a mais ou menos um quilômetro de distância da minha casa. Antes que eu pudesse caminhar os primeiros duzentos metros, uma vizinha muito velhinha estranhou que uma criança tão franzina estivesse, em pleno outono, vestida com roupa de verão.
    Não me lembro do nome dela, por que minha memória me falha, mas lembro que ela usava uma bengala, um vestido florido velho e puído, um casaco de lã castanha e tinha apenas dois dentes: os caninos inferiores. Suponhamos que o nome dela fosse Dona Maria e que a partir de agora será.
    Dona Maria não se conteve. Me parou a meio do caminho e mandou voltar para casa e colocar um casaco. Todo mundo sabe que vento frio dá resfriado. Quando voltei com o casaco posto, Dona Maria me mandou entrar em sua casa, beber um copo com leite quente e um pão com manteiga fresca. A casa cheirava a velhice. Uma mistura de mofo, com couves, açúcar e leite. Cheiro de casa de vó.
    No quintal, Dona Maria plantava batatas e isso me lembrou aquela música que mamãe um dia me ensinou: batatinha quando nasce, espalha rama pelo chão. Foi só depois dessa intervenção da Dona Maria, que eu pude, enfim, voltar ao meu caminho em direção à escola. Eu tinha acordado tão cedo, que mesmo com os percalços ainda fui uma das primeiras a entrar pelos portões daquele que parecia ser o mundo mais incrível de todos.
    Menos de uma hora depois, minha mãe chega à escola descabelada, praticamente de pijama, com a minha irmã bebê pendurada pelo braço e o desespero estampado no rosto. Tinha acordado e eu não estava em casa.
    Por sorte mamãe cruzou com Dona Maria, no caminho, que a acalmou:
    -Mandei-a vestir um casaco por que estava frio. Dei-lhe um copo com leite quente e um pão e lá foi sua menina para a escola. Tão pequenina.
    Não imagino a aflição que causei na minha mãe, mas acho que nesse dia eu aprendi que é possível chegar a qualquer lugar se você tiver uma boa dose de ansiedade, curiosidade e leite quente na barriga.