05 março, 2009

Madalena

Madalena corre contra o tempo e contra a vida, mas encontra em certos braços a calmaria. Passam as horas, passam os dias, e Madalena vê seus passos cada vez mais leves, como se o que vivesse fosse apenas uma grande alegoria. A respiração é suave, todas as manhãs. O corpo flutua e Madalena tem todos os seus poros em alerta. Todo o vento que passa é mais uma dança dos cabelos. Todos os passos dados é a certeza de que está cada vez mais longe do chão. Madalena já quase não sente as próprias mãos. Vive um sentimento desconhecido que, ao contrário de todas as outras histórias da sua vida, está sem pressa de conhecer, sorvendo com muita calma todos os instantes. Como se fosse uma bola de sorvete de creme que não derrete na boca. Madalena consegue fechar os olhos e não pensar em nada, consegue dormir sem recapitular o dia, consegue acordar sem pensar no futuro. Pela primeira vez na vida, Madalena está tranquila como nunca esteve. Pela primeira vez na vida Madalena sente que não deve à vida a necessidade de ser, tão intensamente vivida, por que hoje, Madalena prefere acordar ao lado de quem lhe acalma e sentir que o seu corpo é apenas uma folha de papel à deriva.

04 março, 2009

Maria e a Prateleira

Um dia a mãe de Maria lhe disse: "parece que a minha vida está encostada numa prateleira, pegando poeira, enquanto espera ser vivida". Quando ouviu aquela frase, Maria olhou para ela com o pesar de quem não poderia, naquele momento, fazer nada que a ajudasse a mudar a sua vida e pior, se sentia culpada por uma parcela daquela vida parada. Sua mãe, tão jovem, nunca tinha vivido em função de si mesma, apenas em função daquilo que a vida tinha lhe oferecido. E era muito pouco. Mesmo assim, sua mãe agia com uma paciência de quem, ou é muito sábio, ou já tinha se conformado. O olhar de quem encosta a vida, é sempre virado para coisa nenhuma. Perdido.

Mas o caso não vem ao caso por causa da mãe de Maria apenas. Com o passar dos anos Maria vem percebendo que, não somente as semelhanças físicas as aproximam, mas uma incrível capacidade de sentirem a vida, as duas, da mesma forma. Sempre. São duas questionadoras incorrigíveis. Insatisfeitas inveteradas. Inconformadas com tudo, não por birra, mas por que lhes falta a serena capacidade de simplesmente aceitar. As coisas, para elas, não são como são, não são assim.

Com o passar dos anos também, Maria, tal como a sua mãe, sente que a sua vida está encostada numa prateleira, esperando ser vivida. Esperando um grande acontecimento que dure mais do que uma fotografia. Esperando as coisas acontecerem rapidamente, com uma urgência que aflige. Esperando coisas grandiosas, incríveis. Viagens, trabalhos, mudanças bruscas de rumo, um filho, um carro novo. Qualquer coisa que mexa com a sua rotina. Qualquer coisa que a faça perceber o quanto a vida mudou e o quanto vale a pena.

Mas a única coisa que Maria sente é que a vida continua encostada nos livros que ela ainda tem para ler. A cabeça está ausente. Maria não sofre por amor. Ama sem sofrer. Os dias são todos iguais. No final do mês o dinheiro nunca é dela. O carro continua quebrado. A vontade não existe. O otimismo continua não sendo o seu forte. As barrinhas de cereais nunca fazem parte da sua feira do mês. Maria não tem sobressaltos. Não faz planos, não cria expectativas, não vive nem o hoje nem o amanhã, por que sente que não vive. Ela não muda. Permanece muda. Os cd's permanecem mudos também, e os livros calados, e a poeira. Maria permanece leve, solta e alheia, pousada na prateleira.