06 novembro, 2012

Primeiro dia

  
 Não lembro exatamente como foi, mas sei que mamãe costumava passar as noites acordada por que minha irmã caçula, Aimara, chorava muito. Muito é um eufemismo. Minha irmã chorava a noite inteira com o vigor pulmonar de uma soprano. Mamãe não dormia. Levantava-se com olheiras profundas e raramente tinha os cabelos no seu devido lugar. O esgotamento físico era evidente em cada retrato de família e, por isso, naquele dia, como em tantos outros, mamãe não conseguiu acordar.
    Entre uma sinfonia de choro e outro rompante, Aimara cansou de gritar e deixou que mamãe dormisse por algumas horas. No outro dia ela teria que acordar cedo para me levar à escola. Meu primeiro dia de aulas na primeira série da nova escola. Mas mamãe não acordou.
    Eu tinha 5 anos quando decidi não esperar mais. Já tão nova demonstrava os primeiros traços de uma personalidade completamente ansiosa e imediatista. Levantei da cama e coloquei meu melhor vestido. Branco com uns detalhes amarelos muito singelos. Era setembro de 1991 e em um mês eu faria 6. Uma mocinha.
    O frio do outono em Fontanelas, aldeiazinha no entorno da vila de Sintra, em Portugal, já dava seus sinais e mesmo assim eu achei por bem vestir aquele vestido de verão.
    Sem pensar duas vezes saí de casa em silêncio, para não acordar mamãe e fui para a escola, que era a mais ou menos um quilômetro de distância da minha casa. Antes que eu pudesse caminhar os primeiros duzentos metros, uma vizinha muito velhinha estranhou que uma criança tão franzina estivesse, em pleno outono, vestida com roupa de verão.
    Não me lembro do nome dela, por que minha memória me falha, mas lembro que ela usava uma bengala, um vestido florido velho e puído, um casaco de lã castanha e tinha apenas dois dentes: os caninos inferiores. Suponhamos que o nome dela fosse Dona Maria e que a partir de agora será.
    Dona Maria não se conteve. Me parou a meio do caminho e mandou voltar para casa e colocar um casaco. Todo mundo sabe que vento frio dá resfriado. Quando voltei com o casaco posto, Dona Maria me mandou entrar em sua casa, beber um copo com leite quente e um pão com manteiga fresca. A casa cheirava a velhice. Uma mistura de mofo, com couves, açúcar e leite. Cheiro de casa de vó.
    No quintal, Dona Maria plantava batatas e isso me lembrou aquela música que mamãe um dia me ensinou: batatinha quando nasce, espalha rama pelo chão. Foi só depois dessa intervenção da Dona Maria, que eu pude, enfim, voltar ao meu caminho em direção à escola. Eu tinha acordado tão cedo, que mesmo com os percalços ainda fui uma das primeiras a entrar pelos portões daquele que parecia ser o mundo mais incrível de todos.
    Menos de uma hora depois, minha mãe chega à escola descabelada, praticamente de pijama, com a minha irmã bebê pendurada pelo braço e o desespero estampado no rosto. Tinha acordado e eu não estava em casa.
    Por sorte mamãe cruzou com Dona Maria, no caminho, que a acalmou:
    -Mandei-a vestir um casaco por que estava frio. Dei-lhe um copo com leite quente e um pão e lá foi sua menina para a escola. Tão pequenina.
    Não imagino a aflição que causei na minha mãe, mas acho que nesse dia eu aprendi que é possível chegar a qualquer lugar se você tiver uma boa dose de ansiedade, curiosidade e leite quente na barriga.

28 comentários:

  1. Que emoçãoooo senti lendo isso . Totalmente sua fã !

    Supeer beijos linda .

    Grazi Maia

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  2. Bela história, escreve um livro, Carol!

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  3. pensei em vários comentário, mas o que não me sai da cabeça é que às vezes só precisamos de uma dona maria no nosso caminho: não nos prende, mas também não nos deixa ir sem antes um pão com leite...

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  4. Gente, que coisa linda.
    Quando leio seus textos mais pessoais, cheios de coisas bacanas sobre a vida ditas nas entrelinhas, não consigo entender como tem gente nesse mundo que ainda se prende a uma idéia tão pequena como criticar um "look do dia", sem se dar o trabalho de pensar que às vezes, a escolha daquela peça que não agradou foi cheia de sentimento e história.
    Adoro seus textos, Carol.
    E minha Frida tá emolduradinha, linda no meu quarto!
    bjbjbj

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  5. Respostas
    1. Também... Amo textos que faz vc usar sua imaginação tentando ver a cena. Imaginei dona Carolzinha pequena.kkkk

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  6. Amei!!!
    Carol escreve um livro... :)

    Beeijão

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  7. Lindo texto, Carol. Passa muita emoção. Imaginei/criei cada detalhe. E mesmo se não fosse verdade o conto, que conto "inventado" mais lindo.

    Beijo. Bom dia

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  8. mini-carolzinha cabulosa já dando trabalho QUE BONITINHOOOOO *-*

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  9. Muito bonito (e muitíssimo bem escrito), Carol. Um abraço aqui da portuguesa de Coimbra! Rita

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  10. Vamos fazer um abaixo assinado: Escreve um livro Carol!!!

    Acho digno rs!

    Lindo texto.
    bjs.

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  11. Lançamento do beijos e textos na livraria travessa do leblon... Olha q chique bem!! Hahahaha

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  12. Quando lançar o tal livro, das tais estórias, me liga, me manda um telegrama que eu vou!!! Você é foda. Beijos mineiros pra você!!!

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  13. Aff!!! Menina, assim não vale! Emocionei!!! Que texto lindo,Carol.
    Parabéns!!!

    Sou fã.
    Beijo:***

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  14. PRIMEIRO dia de aula, SEIS anos e sabe de cor o caminho de 1km pra escola? Aham tá bom.

    Seria mais justo se você deixasse explícito que o texto é inventado... pois muita gente pode acreditar q é verdade essas coisas.

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  15. Pois foi mesmo assim, aos seis anos minha filha tinha ido mesmo sozinha para a escola no seu primeiro dia de aulas. Na verdade eu simplesmente nunca na minha vida precisei acordar a Carolina para ir à escola, ela sempre dormiu cedo e acordou cedo, é diurna por natureza e muito ansiosa, mas confesso que eu mesma me espantei com a atitude dela... tanto que quando acordei e não a vi em casa pensei que ela talvez, tivesse chegado atrasada, mas não, quem me confirmou foi a Dona Maria José, que todos conheciam por Dona Misé, que a Carolina saíra de casa ainda o dia mal tinha clareado.
    Mas mesmo depois de dona Misé ter-me dito isto fui até a escola me certificar que ela tinha mesmo chegado bem... já era hora do intervalo quando cheguei e lá estava a Carolina no meio das outras crianças como se já estudasse ali a anos.
    Ela destacava-se por ser muito pequenina e magrinha, pele bronzeada e cabelos finos, claros e quase loiros, enquanto as outras crianças bem constituídas, de pele rosada e cabelos fortes... quando a Carolina me viu gritou "Mamãe!" abriu um sorriso e deu-me adeus.
    Respirei aliviada e ri-me também.
    Nunca ela me cobrou esta falta ou traumatizou por ter ido sozinha no seu primeiro dia de aulas, pra quem não sabe, a Carolina foi a criança mais fácil do mundo de se criar, ela parecia já saber o que fazer e eu não precisava falar duas vezes a mesma coisa para que ela obedecesse ou aprendesse.
    Ela passava o dia inteiro a brincar, ou a dançar, ou a pintar... só dava trabalho para comer, não gostava de comer, só de vitamina de banana.
    Ela sabia muito bem o caminho da escola por que nos mudamos para Fontanelas em Junho de 1991, e costumávamos sempre passear na aldeia para apreciar a beleza do lugar e as belas moradias que lá havia, sem contar que íamos sempre tomar café numa pastelaria que ficava num largo que era onde havia todo o comercio da aldeia e a escola, é claro! De Junho a Setembro a passear no mesmo lugar pelo menos uma vez por semana, até um cão aprendia a ir sozinho para a escola, caramba!
    Acho de muito mal gosto um anónimo que nem assina em baixo, tachar uma pessoa de mentirosa por que talvez a sua vida não tenha nada de interessante pra contar, por isso torna-se impossível que outras pessoas possam ter uma vida diferente deste anônimo.
    Minhas filhas tiveram uma infância diferente, foram criadas no campo, não tinha-mos televisão, meus presentes sempre foram livros e só comiam comidas naturais, nada congelado, frito ou empacotado.
    Eu atravessei um oceano por que queria que a minha vida fosse diferente e que as minhas filhas tivessem uma vida cheia de acontecimentos interessantes. E a Carolina soube capta-los, aliás ela sabe apreciar tudo o que a vida lhe oferece e sabe fazer de qualquer pequeno acontecimento na vida valer uma história

    Parabéns filha por conseguires contar uma história tão simples de forma tão envolvente.

    Acho que o livro deve ser escrito sim, nem que seja só um na tua vida, mas de-nos pelo menos um.

    Beijos,
    Mamis

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  16. LINDO LINDO LINDO <3
    Essa Carol é fera mesmo!
    @vivibmarcondes

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  17. Sem palavras... o que dizer de uma criança que aos 3 anos e meio cantava "Bem que se quis" da Marisa Monte? ela não era lá muito afinada e nem sabia falar direito ainda, tanto que eu só reconheci a música assistindo ao vídeo (VHS) anos depois, mas ela já conhecia a letra de uma música que eu mal conhecia hahahaha... sempre foi uma menina prodígio! :D
    Escreve logo esse livro, que eu quero comprar, mesmo já conhecendo e até fazendo parte de muitas coisas da tua vida, sua linda!!!

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  18. Carolzinha,
    É quase estranho gostar tanto de uma pessoa sem sequer conhecer seu tom de voz, sem nunca tê-la visto, ou tocado nela.
    Mas, por todos os textos que você escreve (e que eu adoro ler, seja aqui ou no small), só sei de uma palavra pra te definir: iluminada!

    Queria muito saber criar meus filhos, que não devem demorar a chegar, como a tua mãe criou vocês. Coisa linda de se ver!!!

    Beijos e muito, muito sucesso!

    Lenyssa Nunes
    http://www.popglam.com.br

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  19. Lindo Carol!
    Eu fico impressionada com esses anônimos que se acham oniscientes, sabe? Eu tinha 5 anos e ia sozinha pra escola, sempre fui! Naquele tempo não havia tanta violência, por mais que meus pais sempre me alertaram a não falar com estranhos ou aceitar algo deles. Só quem morou em cidade pequena ou nas vilinhas de Portugal sabe o quanto aquilo tudo é calmo, lindo e o qto as pessoas são simples de coração e cuidadoras uma das outras.
    Seu texto é lindo e eu fiquei imaginando você nesse dia tão especial.
    Eu já morei na Ericeira, chegou a conhecer?
    Bjnhos

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  20. Carol, eu nao tenho palavras pra dizer o quanto seus textos mexem comigo.
    Vc 'e talentosissima, e tem uma historia de vida incrivel!

    Mto mto sucesso em seu caminho.

    Mil Beijos, Patty Taguchi

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  21. Carol,

    eu nao tenho palavras pra expressar como seus textos mexem comigo.,
    Vc e talentosa demais!

    Mto mto mtoooo sucesso!!!

    Bjs, Patty Taguchi

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  22. É preciso coragem também, Carol. Vê-se logo que tu tens. Coragem, apesar de. Do medo, da sociedade, da covardia alheia. Muito inspirador esse teu texto memorialista, tão cheio de poesia. Lindo! Parabéns!

    Continua. :)

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